Tiago Eurico de Lacerda [2]
Considerando os fatores que justificam a
existência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como a deficiência
moral da sociedade, do Estado e das famílias ao negligenciarem sua função
protetiva, talvez o termo “comemoração” não soe o mais adequado para referir os 30 anos da sua vigência. Comemorá-lo
equivaleria a celebrar uma vitória que ainda não ocorreu, sobre uma luta que
sequer deveria existir.
Tal
observação não tem o condão de descredibilizá-lo, pelo contrário, havendo condutas
que contrariem o senso de humanidade e ética, é imperativo o dever estatal de
criar normas regulamentadoras que coadunem com os interesses sociais. É nessa
esteira que se encontra o ECA: uma norma com vistas a resolver o cenário de
irresponsabilidade da tríade sociedade, Estado e família.
Esse
cenário iniciou-se com a colonização do Brasil, que, guiada pelos valores da
modernidade, como a acumulação de capital e o liberalismo econômico, transformou
negros e indígenas em escravos, tratando-os como mercadoria e submetendo-os a
todo o tipo de violência. Nesse contexto, o fato de ser criança ou adolescente
em nada correspondia à prerrogativa de proteção, em verdade, ocorria o proveito
dessa situação para adestrá-los, o que lhes custava a separação do convívio com
seus pais, a violência sexual, o trabalho forçado etc.
Com
a abolição, que a propósito é outra norma cuja comemoração mostra-se
controversa, a expectativa de se estabelecer um ambiente social favorável a
esses sujeitos transformou-se em um problema tão severo quanto o que havia
antes. Isto porque eles passaram a ser abandonados sem nenhum tipo de amparo, privados
do trabalho em razão da raça ou classe, enfim “empurrados” para a periferia e
forçados a viver na miséria, eis o processo de marginalização, fruto do
controle social de classes, que vitimiza uma das figuras mais vulneráveis do
cenário social: a da criança e do adolescente. Neste ponto, torna-se cristalina
a percepção do desinteresse do Estado em promover políticas públicas, o
desinteresse da sociedade de classes em ampará-los e, muitas vezes, não só o desinteresse,
mas a própria impossibilidade das famílias (quando estas existiam) para
subsidiar suas crianças e adolescentes.
Na
medida que ocorria a marginalização, havia o crescimento avassalador de crianças
e adolescentes em situação de rua ou em abrigos, exposição à fome, à violência
sexual, mas também ao trabalho forçado, tanto na forma de “adoção” para fins de
criadagem como para atender as demandas do narcotráfico. Embora sob uma perspectiva
não humanitária, tal problemática social foi levada em consideração pelo Estado,
de modo que, em 1927, criou-se o código de Menores, cujo enfoque direcionava-se
à questão da higiene e saúde pública, em uma abordagem que criminalizava a
pobreza. Em outras palavras, as crianças e os adolescentes passaram a ser “uma
pedra no sapato” do Estado e da elite social, que, por si só, justificava a
mobilização no sentido de criar uma norma regulamentadora. Repita-se: referida
iniciativa não se relacionava com a ideia de humanitarismo.
Décadas
seguintes, iniciou-se o movimento pós Segunda Guerra Mundial em prol dos
Direitos Humanos, sendo estes aderidos por diversas nações, inclusive o Brasil.
No entanto, sua criação não representou uma transformação na maneira como o
Estado e a sociedade lidavam com a questão das crianças e dos adolescentes,
sendo forçoso admitir que os Direitos Humanos não se prestavam a garantir
nenhum tipo de proteção, eram ineficazes no Brasil. Não à toa, somente em 1988,
com a promulgação da Constituição Federal e a previsão expressa de proteção às
crianças e aos adolescentes, em seu art. 227, é que se pode vislumbrar um
horizonte de transformação para aquela realidade social. Ainda assim, a
regulamentação do dispositivo ocorreu apenas em 1990, com a criação do Estatuto
da Criança e do Adolescente.
Assim
sendo, o que antes mostrava-se ser uma ilusória expectativa de direitos passou
a materializar-se na forma de um estatuto, comprometido com uma abordagem
humanitária, pela qual se estabelece o direito às crianças e aos adolescentes do
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual, e social em condições de
liberdade e dignidade. Do mesmo modo, o diploma legal tipifica condutas
criminosas nas quais o público infanto-juvenil cotidianamente é vítima.
Nessa
perspectiva, o Estatuto também dispõe os mecanismos aptos à garantia e
efetivação desses direitos, incumbindo à sociedade, ao Estado e à família o
dever de protegê-los. Não obstante, ele inova ao criar o Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente, os Conselhos Estaduais, Distrital e
Municipais e o Conselho Tutelar, todos carregando em si determinada
responsabilidade, seja no sentido de criar diretrizes ou promovê-las. Além
disso, delega várias responsabilidades compreendidas na alçada de competência
do Ministério Público e ao Poder Judiciário.
Todo esse aparato social e jurídico mostrou-se imprescindível ao longo desses 30 anos, dada a naturalização de circunstâncias desumanas para com este público, que vão desde a desigualdade social até condutas criminosas. Enfim, pode não haver motivos para comemorar o Estatuto, mas há motivos para acreditar que, através dele, a sociedade encaminha-se para uma nova percepção social e, quiçá, no futuro, venha a abraçar com legítimos afeto e cuidado quem nunca deveria ter sido abandonado.
[1] Currículo Lattes: André Martini
[2] Currículo Lattes: Tiago Eurico de Lacerda
Para citar este texto:
MARTINI, André; LACERDA, Tiago Eurico de. 30 anos do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente): há o que comemorar? Londrina, novembro de 2020. In.: Tiago Lacerda. Disponível em: http://www.tiagolacerda.com/2020/11/30-anos-do-eca-estatuto-da-crianca-e-do.html.
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